quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Falando em Saúde, essas comunidades marginais!

Leonídio Gaede
10 de janeiro de 2012

Estive pensado sobre a história do Bom Samaritano (Lc 10.25-37). Não me lembro de quando entrei em contato com essa história pela primeira vez. A lição que primeiro internalizei a partir dela foi, no entanto, que existem dois modelos de postura pessoal diante de um exemplo de vulnerabilidade social: não ajudar (condenável) e ajudar (louvável). Cedo aprendi que a partir deste texto bíblico cabe um discurso sobre misericórdia. Esta palavra carrega duas outras: miseri e cárdia, isto é, miserável e coração. Misericórdia é, pois, compaixão ou paixão com o miserável. Trata-se da capacidade de apaixonar-se pela miséria alheia ou de padecê-la. A pergunta de Jesus “- Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado?” (v 36) protagoniza o apaixonado pela miséria alheia e não o miserável. Recebe destaque o socorrista e não o socorrido. Daí vem a possibilidade de dizer que o assunto desta parábola é a misericórdia e não a miséria de uma pessoa que foi gravemente ferida num assalto e abandonada na beira da estrada.

Sim, trata-se de um episódio de socorro. O evangelista Lucas era médico (Cl 4.14). A personagem principal de seu relato é um profissional de saúde. O Bom Samaritano e o seu animal de montaria podem ser vistos como o enfermeiro e a ambulância do SAMU chegando e dando um caráter de integralidade à ação: uso de misericórdia, realização de procedimento médico, disponibilização de um leito e providência de uma caução. Houve ética profissional (misericórdia), assistência médica (remédios e enfaixamento) e o procedimento administrativo adequado (internação e alocação de recursos).

Sem dúvida, as ações de nossas comunidades em apoio a pessoas doentes são essência de vida comunitária. A visita, a rede de oração, a unção com óleos, a imposição de mãos, ... não devem ser entendidas como algo que faz parte, mas como algo central no ser comunidade de Jesus Cristo. O problema é que se trata de ações constituídas à margem do desenvolvimento da sociedade como um todo.

Já estamos avançando na segunda década do século XXI. Chamamos este nosso tempo de época de mudanças e mudança de épocas. A cobrança de atitudes profissionais a todo instante e de todos os setores faz parte deste tempo em que vivemos. Isto significa que as ações devem começar a ter um jeito de serem executadas. Estamos instalando uma convenção social sobre um jeito aceitável de fazer as coisas. O único jeito é o jeito profissional e competente. À proposta de “sociedade alternativa” de outrora restam dois caminhos: adaptar-se ao jeito, retornando à oficialidade, ou assumir de vez uma via paralela.

Nossas comunidades não apregoam uma sociedade alternativa, mas toleram e mantêm certas atitudes (aqui também se aplica que “quem cala, consente”) que a situam na margem ou quase em faixa paralela ao desenvolvimento da grande sociedade, essa do jeito profissional. Sem entrar na questão do amadorismo das comunidades em diversos setores - como a comunicação feita por não profissionais ou simplesmente não feita, as construções feitas em mutirão sem os devidos registros, os terrenos, atas e estatutos não legalizados - falemos de um sinal eloquente em outro sentido.

Uma forma de mudar o papel social de um sujeito histórico é transformá-lo em ponto turístico ou em folclore. A regra poderia ser esta: teu adversário te incomoda? Transforma-o em monumento histórico, dá-lhe um nome de rua, cria uma dança coreografada em sua homenagem. Seu papel na sociedade mudará e tu estarás livre para atuar a teu modo. Não estou com isto menosprezando os monumentos históricos que aí estão a alimentar a esperança, servindo de exemplo a novas gerações. A “canonização”, porém, tem hora. Pois bem, o turismo religioso está quase tomando conta do calcanhar de Aquiles da fé cristã: Natal e Páscoa - nada menos que nascimento, morte e ressurreição do Senhor e Salvador. É preocupante que o centro da fé cristã seja transformado em turismo e folclore. Mas não culpemos as Secretarias de Turismo. As encenações natalinas das próprias comunidades seguem a mesma tendência. O que precisamos reconhecer é que transformar a mensagem central da fé cristã em turismo e folclore é mudar o papel que a comunidade tem na sociedade nos dias de hoje.

Também a área de articulação teológica e pastoral das comunidades dá sinais da constituição de uma via que vai seguindo na margem da oficialidade. Exemplo é o exercício de uma clínica pastoral desvinculada, por um lado, do sistema médico oficial e, por outro, do culto cristão. Com as ações que são desenvolvidas nos hospitais, pelas comunidades luteranas, o tratamento médico está sendo apoiado, criticado, legitimado, rejeitado, explicitado, ignorado ou complementado? Ministros e ministras da igreja, reivindicam passe-livre nos hospitais. Estão eles e elas dispostos a, de fato, entrar nessas instituições? Até onde vai a independência dos religiosos em relação a instituições médicas e qual é o seu sentido, se se quer atuar nela quando os membros estão lá? Outro exemplo, ainda no assunto dos exercícios que a própria comunidade desenvolve, é o tratamento de doentes com liturgias especiais para doentes, sem vínculo com o tratamento médico e sequer com o culto cristão. Até que ponto liturgias especiais para doentes criam uma esfera independente do tratamento médico e do culto cristão?

Desde a década de 1980 ouvimos falar de medicina integrativa (Claunara Schilling Mendonça, Oficina SOF, setembro de 2010). Trata-se de um movimento que amplia o conceito de terapia, pois incorpora procedimentos não médicos ao tratamento de pacientes médicos. A motivação vem curiosamente da área médica e não, como seria de se esperar, de uma associação das tantas terapias alternativas existentes. Houve a constatação de que entre 70 e 80% das pessoas que estão em tratamento médico procuram um segundo espaço para se tratarem.

Segundo a Revista Veja (edição 2235 - ano 44 – nº 38, 21 de setembro de 2011), a primeira instituição de ensino dos Estados Unidos a abrir suas portas às terapias complementares ou alternativas foi a Universidade de Maryland, onde o médico Brian Berman fundou o Centro de Medicina Integrativa em 1991. Hoje existem 42 clínicas do tipo naquele país e elas movimentam 30 bilhões de dólares por ano. Também no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, o mestre de reiki Plínio Cutait, coordena um departamento de Cuidados Integrativos.

As comunidades luteranas têm origem no Brasil com a imigração alemã. Está mais ou menos estabelecido que o primeiro jeito de ser comunidade luterana no Brasil carrega a marca das possibilidades de atuação que os imigrantes tiveram como cidadãos de segunda classe. Por um razoável período, por exemplo, o matrimônio de um casal luterano não era reconhecido e os que morriam não podiam ser sepultados nos cemitérios com os demais brasileiros. Eles eram tratados como dissidentes religiosos. Isto certamente influenciou o jeito de organizar as comunidades. Mesmo que a pequena bagagem trazida por eles fosse religiosa (Bíblia, Hinário e Catecismo), o prédio que primeiro construíram não foi um templo, mas um prédio escolar, que era destinado aos cultos. Ao lado disso, não podemos esquecer as iniciativas associativistas desses imigrantes. Eles construíram sociedades de canto, de tiro, de leitura, de ginástica, de bolão, ... E o que aqui interessa mais de perto, constituíram associações de auxílio mútuo, de saúde e de amparo. Podemos compreender que, pelo menos em alguns casos, essas experiências, devido às circunstâncias, eram concebidas à margem da oficialidade do país. Merece, no entanto, destaque que os membros dessas comunidades luteranas, primeiras a serem fundadas e fundantes, no jeito de ser, das que vieram depois, experimentaram que tudo o que lhes interessava, além do trabalho na terra, isto é, religião, educação, saúde, cultura e lazer, passava pela comunidade. Era a assembleia da comunidade que decidia os rumos da igreja, da escola, do hospital, da sociedade de canto, do cemitério, ... Aí pode estar uma explicação do esvaziamento da assembleia, tão preocupante nos encontros de presbíteros nos dias de hoje. Aquilo que não foi estatizado foi privatizado e à assembleia da comunidade resta avalizar os assuntos que vêm da paróquia e administrar assuntos internos de patrimônio e grupos.

A prática cidadã da comunidade de outrora funcionava à margem do Estado. A prática cidadã de hoje funciona à margem da comunidade. A solução deste hiato pode passar por duas ações: a entrada consciente e planejada das comunidades nos Conselhos Municipais de Saúde, Educação, Agricultura, Cultura, Assistência Social, ... e a mobilização constante para que práticas comunitárias conhecidas como alternativas ou complementares passem a fazer parte de estratégias integrativas, que nada mais são do que ações com visão holística a somar esforços por uma sociedade mais saudável e melhor.

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