sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

As Comunidades Cristãs e a Saúde

Por uma Igreja do Cuidado
P.Ms. Leonídio Gaede[1]

Na apresentação de uma pesquisa sobre a relação entre médico e paciente[2], Claunara Schilling Mendonça informa que, em uma consulta pelo Sistema Único de Saúde no Brasil, o médico interrompe a pessoa, em media, após 23 segundos, impedindo a narrativa da história pessoal. Ela também apresenta a regra dos 50% nas relações entre médicos e pessoas usuárias: De acordo com essa regra, 50% das pessoas deixaram as consultas sem compreender o que os médicos lhes disseram, 50% das pessoas compreenderam equivocadamente as orientações recebidas dos médicos, 50% das pessoas não foram capazes de entender as prescrições de medicamentos. Em terceiro lugar, ela apresenta “a evolução de um cliente de uma operadora de plano de saúde privado”:
Ano
Evolução da Situação de Saúde
1990
Homem de 40 anos com obesidade, estresse e história familiar de diabetes
1995
Diagnóstico de hipertensão arterial
2002
Diagnóstico de diabetes
2008
Cirurgia de revascularização do miocárdio feita no hospital x
2009
Cirurgia de revascularização do miocárdio complicada por acidente vascular encefálico com seqüelas motoras. Custo das intervenções: 50 mil reais
2009
Atenção domiciliar e gestão de caso
A situação, segundo Claunara, aponta para uma “falência do sistema centrado na consulta médica de curta duração”. É evidente que situações como esta formam um terreno propício ao surgimento de outras propostas de recuperação de saúde ou de combate à doença.

Sissi Georg[3] vincula o surgimento da diaconia nas comunidades cristãs do III século a uma situação que bem poderia caracterizar comunidades cristãs que não se conformam com certa realidade apresenta propostas novas: A autora conta que naquele século era comum aparecerem corpos boiando no Mar Mediterrâneo. Eram vítimas de naufrágios. As comunidades não conseguiram permanecer indiferentes. Organizaram serviços de sepultamento desses corpos.

Também diante da realidade da doença de hoje, as comunidades cristãs não conseguem ficar indiferentes. Diante de sistemas oficiais considerados ineficientes, entram em ação. Elas não suportam a falta de efetividade e eficácia no atendimento às pessoas doentes. O empenho dessas comunidades por mais saúde tem fundamento bíblico-teológico.

O ministério de Jesus Cristo não só incluiu a cura, mas também teve nela um destaque. Nos evangelhos há relatos que aparentemente foram construídos literariamente em função da cura.  Assim é, por exemplo, o caso de Mc 2.1-12 que relata a história do paralítico de Cafarnaum. Há várias informações no texto[4] e todas, de certa forma, estão a serviço do centro do relato, que é a cura.

São relatadas muitas curas no Novo Testamento: a cura do filho do oficial (João 4.46-54), a cura do paralítico de Betesda (João 5.1-9), a libertação do endemoninhado (Marcos 1.23-28; Lucas 4.31-36), a cura da sogra de Pedro (Mateus 8.14,15; Marcos 1.29-31; Lucas 4.38,39), a purificação do leproso (Mateus 8.2-4; Marcos 1.40-45; Lucas 5.12-16), a cura do paralítico (Mateus 9.2-8; Marcos 2.3-12; Lucas 5.18-26), a cura da mão ressequida (Mateus 12.9-13; Marcos 3.1-5; Lucas 6.6-10), a cura do criado do centurião (Mateus 8.5-13; Lucas 7.1-10), a cura de um endemoninhado mudo (Mateus 12.22 e Lucas 11.14), a cura do endemoninhado geraseno (Mateus 8.28-33; Marcos 5.1-14; Lucas 8.26-39), a cura da mulher enferma (Mateus 9.20-22; Marcos 5.25-34; Lucas 8.43-48) a cura de dois cegos (Mateus 9.27-31), a cura do mudo endemoninhado (Mateus 9.32,33), a cura da filha da Cananéia (Mateus 15.21-28; Marcos 7.24-30), a cura de um surdo e gago (Marcos 7.31-37), a cura do cego de Betsaida (Marcos 8.22-26), a cura do jovem possesso (Mateus 17.14-18; Marcos 9.14-29; Lucas 9.38-42), a cura de um cego (João 9.1-7), a cura de uma mulher enferma (Lucas 13.10-17), a cura de um hidrópico (Lucas 14.1-6), a cura dos leprosos (Lucas 17.11-19), a cura do cego Bartimeu (Mateus 20.29-34; Marcos 10.46-52; Lucas 18.35-43), a restauração da orelha de Malco (Lucas 22.49-51; João 18.10)

Teologicamente podemos fundamentar ações em saúde que acontecem no seio da comunidade cristã a partir do propósito de cuidado com a fragilidade humana:[5] O ser humano é um ser frágil a partir das condições biológicas. Ele é um dos poucos seres do reino animal que dependem de cuidados para sobreviver na infância e, às vezes na velhice. O ser humano é um ser frágil a partir das condições sociais de doença, pobreza, desemprego, epidemias e solidão. O ser humano é um ser frágil a partir das condições climáticas como terremotos, secas, enchentes, tsunamis e aquecimento global. O ser humano é um ser frágil a partir das condições políticas como guerras, regimes de exceção e corrupção. O ser humano é um ser frágil a partir das condições psicológicas como stresse, medo, depressão, tristeza e luto. Uma ou mais dessas condições podem colocar o ser humano em uma situação de fragilidade extrema.

Na Bíblia, essa situação de fragilidade extrema é expressa através de uma linguagem de metáforas. No Antigo Testamento temos a imagem do Vale de lágrimas (Sl 84.6); no Sl 23 temos a “sombra da morte”; no Sl 88.1-6 o “She'ol”; Além disso, temos no Credo Apostólico o “...mundo dos mortos". A salvação ou o resgate desta situação é, em linguagem bíblica, uma cura, que pode representar também a salvação. No Novo Testamento temos como imagem desta situação que requer resgate o medo de afundar nas profundezas do mar de Pedro (Mt 14. 22-33), que é resgatado por Jesus: “Prontamente, Jesus, estendendo a mão, tomou-o” (Mt 14.31). Da mesma forma, Jesus tomou pela mão a sogra de Pedro, quando a curou: “Aproximando-se, tomou-a pela mão; e a febre a deixou” (Mc 1. 31). Torna-se central neste sentido o que Jesus diz em Marcos 10.45: “Eu não vim para ser servido, mas para servir e dar a minha vida em resgate por muitos”. Existe, porém, uma segunda dimensão de cura, resgate e salvação no Novo Testamento. Trata-se do cuidado e da solidariedade na realidade da cruz. O Filho de Deus, Salvador, não desceu e não foi resgatado da cruz, mesmo assim uma pequena comunidade permaneceu fiel aos pés da cruz, inclusive agindo no vazio do dia seguinte da morte, o Sábado de Aleluia. Na situação de caos, abismo, vazio e ausência de perspectiva, na situação sem saída, um grupo de mulheres levou perfumes para um corpo morto. Este é o Deus da cruz, Deus absconditus: onde parece não estar, ali ele está maximamente. Aí deve estar a raiz da comunidade cristã nascida em Pentecostes.

As comunidades cristãs não só estão desafiadas pelo Evangelho a apresentar ações em saúde como alternativa a modelos ineficientes existentes. Elas são desafiadas a se formarem a partir da compreensão de que faz parte da natureza do ser cristã o envolvimento com o resgate de pessoas que se encontram em situação de fragilidade extrema.


[1] O autor é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB, é Pastor Vice-Sinodal do Sínodo Vale do Taquari e atua como coordenador do Serviço de Formação Contínua deste Sínodo. Reside em Teutônia, Rio Grande do Sul.

[3] Em sua Tese de Doutorado “Diaconia e culto cristão: resgate de uma unidade essencial e suas conseqüências para a vida das comunidades cristãs” p.103-104. São Leopoldo, Escola Superior de Teologia. www3.est.edu.br/biblioteca/btd/rieff_m.htm - 8k 
[4] Especialmente as informações de que Jesus retorna à sua região e que uma multidão se reúne para ouvi-lo.
[5] Conforme apontamentos feitos em palestra proferida por Rodolfo Gaede Neto no dia 1º de maio de 2008 em Teutônia-RS.

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